Mais cedo, no twitter, a @lidiazuin levantou uma discussão a respeito do porquê de zumbis estarem fazendo tanto sucesso na cultura pop. A moça é da opinião que o senso de anarquia despertado por um apocalipse zumbi mexe com nosso sentimentos. O @bschlatter (nesse post) explora o fato de que as hordas de zumbis destruindo tudo podem evocar inconscientemente os grupos sociais emergentes, como imigrantes e moradores de favelas, que galgam a cada dia um degrau na escala social, incomodando as classes média e alta, que os vêem com temor e alguma repulsa. O @hugovera comentou que os zumbis viraram a escolha de quem estava cansado dos vampiros terem virados todos uns frescos e esse post do Dan Birlew (em inglês) ainda toca no fato de que zumbis são sacos de pancadas ambulantes, e transformam um mundo num lugar onde a única habilidade que realmente conta é a de espancar cadáveres ambulantes até eles pararem de se mexer.
Não é bem sobre isso que eu quero falar, mas ok.
É que essa discussão me lembrou, até certo ponto, a eterna lenga-lenga de fãs de fantasia a respeito de como tal ou tal criatura fantástica deve agir, ou quais características elas devem ter. Nesse post, eu comentei sobre o porquê de Crepúsculo ter sido tão mal recebido por fãs mais tradicionais de vampiros (o post da estilização e talz), mas acho que uma coisa não ficou clara ao final dele: sim, eu acho que, num mundo como o de hoje, onde informação está a uma wikipedia de distância, não custa nada você pesquisar e se informar antes de escrever um livro para saber qual tipo de criatura casa melhor com ele. Mas não, eu não sou advogada do pensamento de que "[criatura X] de verdade é assim, assim e assada". Não acho que liberdades criativas sejam ruins, ou não teríamos metade dos ícones pop de hoje. No post da estilização do vampiro, toquei de leve no fato de que o que conhecemos hoje como vampiro é mais uma criação hollywoodiana que tudo (o artigo do Dan ali em cima cai nessa armadilha ao atribuir a Drácula razões românticas - sendo que, no livro de origem ele é um personagem tudo, menos romântico...). Hoje, quero falar de zumbis, porque são os queridinhos da vez e os exemplos máximos do que estou querendo dizer.
Antes de mais nada, os zumbis já começam com o pé esquerdo no nome. O termo "zumbi" foi criado não para designar cadáveres meio apodrecidos andando por aí atrás de cérebros. Ele foi pego de empréstimo do vudu (crença haitiana de raízes africanas), onde serve para designar um cadáver que um feiticeiro vudu reanima para que se torne um escravo sem vontade própria. Esse cadáver tem um andar vacilante, não fala, não faz nada sem ter sido ordenado e é completamente leal ao feiticeiro que o levantou. Ah, e ele dificilmente pode ser diferenciado de um vivo comum.
Os casos de zumbificação no vudu têm uma explicação dentro de nossos conceitos cientificamente aceitos: o feiticeiro vudu (nunca vi o termo "voodoo doctor" ser traduzido como "doutor vudu") ministra à pessoa uma droga natural que faz com que ela pareça morta, já que ela sofre uma forte catalepsia associada à paralisia dos músculos, e, quando os efeitos da droga passam, antes que ela volte totalmente a si, ela ingere uma segunda droga que a deixa completamente dopada e incapaz de pensar claramente. Não é à toa que alguém que tome doses muito altas de antidepressivos às vezes é chamado de "zumbi".
O grande criador do gênero de zumbis como o conhecemos hoje é o filme "A Noite dos Mortos-Vivos", de 1968, do diretor George Romero. Chega a ser irônico que a palavra "zumbi" nunca foi usada no filme, onde os mortos vivos eram chamados de... mortos-vivos, ou de "ghouls". Ghoul é um ser da mitologia árabe, que pode ou não ser um morto-vivo, cuja maior característica é matar pessoas e se alimentar do cadáver. Em alguns mitos, o ghoul ainda toma a aparência e as lembranças do morto que consumiu.
Nesse filme, já temos algumas características do que seria característica básica dos zumbis daí por diante: mortos-vivos que comem pessoas e transmitem sua condição através de mordidas. O surgimento do surto de zumbis, no filme, é atribuído a uma sonda espacial que voltou de sua missão carregada de radiação venusiana e caiu nas redondezas do lugar onde houve um incidente. Isso prenuncia o fato de que quase todos os zumbis da atualidade têm sua origem em um fato "científico" qualquer, como um vírus, radiações bizarras ou qualquer outro experimento que falhou. Com a sequência "A Madrugada dos Mortos", mortos-vivos devoradores de gente ganharam seu nicho na cultura pop como agentes do apocalipse, capazes de reduzir o mundo como o conhecemos a meras ruínas.
Muitos filmes, desde então, pegaram o conceito de Noite dos Mortos-Vivos e o expandiram. Em 1985 (quase 20 anos depois do filme de Romero), veio O Retorno dos Mortos-Vivos, um filme de comédia onde se popularizou o conceito de que o alimento primordial do zumbi é o cérebro da vítima. O enorme sucesso desse filme fez com que outras comédias de zumbi aparecessem e o tema se desgastasse como algo muito mais engraçado do que assustador.
Um dos responsáveis pela volta dos zumbis como criaturas temíveis foi o game Resident Evil, de 1996, onde zumbis são criados graças a um vírus desenvolvido por uma companhia farmacêutica inescrupulosa.
OK, agora que vocês já sabem de onde vêm os zumbis, já deve ter pressentido o frankenstein de referências que o zumbi moderno é (e não, o monstro de Frankenstein não é um zumbi, é só morto-vivo). O alicerce da história de zumbi atual vêm do mito original do vampiro nos países eslávicos: alguém, de repente, entra num lugar meio esquisito, e logo percebe que é um covil de vampiros e precisa fugir desesperadamente antes de ter todo o sangue sugado e, com isso, se tornar também um morto-vivo. Esse plot foi levado a extensões apocalípticas no livro Eu Sou a Lenda (recentemente virou filme), onde um homem é o último humano no meio de um mundo inteiro de vampiros. Antes que alguém ache que estou sendo bairrista atribuindo o nascimento dos zumbis aos vampiros, saibam que Eu Sou a Lenda foi a base de George Romero para A Noite dos Mortos-Vivos. RÁ!
O que Romero fez foi fazer seus mortos-vivos comerem carne humana ao invés de sangue, não terem qualquer traço de inteligência humana, e serem criados por radiação venusiana, ao invés de qualquer que seja a força mística que faça vampiros se levantarem. A parte antropofágica foi tirada dos ghouls e a parte de "sem inteligência" foi o quase que o único traço que restou dos zumbis haitianos originais. Resident Evil trocou radiação, cemitérios amaldiçoados e outras causas mais ou menos sobrenaturais por um vírus.
Sério, se algum conservador dissesse pros seguidores de George Romero que zumbis não são cadáveres comedores de gente e que bons mesmos são os filmes onde pessoas têm que lidar com humanos escravizados por feiticeiros vudus, é possível que esse artigo aqui não existisse. Eles desfiguraram quase completamente o mito original dos zumbis e o transformaram no que é hoje. Não foi uma pessoa que inventou o conceito atual de zumbi, foi o Romero que deu o chute inicial e muitas outras pessoas completaram. Sendo assim, acho meio que hipocrisia e mente curta quando as pessoas começam a dizer que tal ser deve agir assim ou assado, ainda mais quando esses seres sequer existem, e a construção de como agem e de quais são seus poderes e limites é parte da diversão de criar histórias com eles.
As pessoas puderam desfigurar o mito do zumbi até não sobrar quase nada de sua raiz haitiana porque zumbis não eram grandes conhecidos do público, nem faziam parte massivamente da cultura pop. Stephenie Meyer tropeçou porque pegou uma criatura que já tem características enraizadas na mente do público e escolheu muito poucas dessas características na construção de seus personagens. Mas que fique claro que o ato dela ter criado um novo modelo de vampiros não é, em si, condenável. Renovação faz parte de você ser uma criatura ficcional, e faz personagens se tornarem atraentes para novos públicos. Se você não gostou de como um autor representou a criatura que você gosta, ignore e não consuma. O tempo vai dizer se o que ele fez vai entrar para a cultura pop de amanhã (e você vai ser só mais um velhinho dizendo como os velhos tempos eram melhores), ou se vai ser ignorado como o ponto fora da curva que foi.
Acho que foi o sentimento expresso pelo texto anterior que fez Diego dar esse conselho, n'O Conservatório: "Olha, não gostou [de como eu sou], vai pra casa e escreve um livro sobre como os vampiros deveriam ser. É o que todos fazem."
Pois é. E isso vale pra qualquer criatura fantástica, de zumbis a pôneis coloridos. Fica aí a dica.
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BÔNUS: Se querem saber minha opinião sobre a discussão que abriu o post, acho que todos os que citei estão parte certos sobre o fenômeno dos zumbis ser tão popular, e eu ainda acrescentaria a origem pseudo-científica do apocalipse zumbi. O fato de zumbis serem criados (hoje) por vírus, engenharia genética ou outras ciências top de linha fazem deles mais próximos de nós que qualquer criatura criada por forças do mal sobrenaturais.
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