quinta-feira, 22 de junho de 2017

Motivo e Oportunidade: um estudo de caso dos modelos cognitivos ideais em um conto de Agatha Christie

Apresentado para a Disciplina de Referenciais de Pesquisa, do Programa de Mestrado em Educação da FAE-UFMG, em outubro de 2013.

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1 – Introdução

Uma de minhas escritoras favoritas é a inglesa Dame Agatha Christie. Muitas horas de minha vida foram gastas lendo seus oitenta romances, e através dela, conheci e passei a admirar o gênero literário conhecido como “literatura policial”. Diferentemente de outros gêneros, há um nível de imersão tão grande em alguns desses livros, que eles ficam na fronteira entre o livro e o jogo. Compreender o que há de tão especial nos romances policiais sempre foi uma de minhas paixões literárias, e acredito que os estudos realizados por vários pesquisadores a respeito de como nossa mente categoriza seja uma forma de alcançar essa compreensão.
Antes de mais nada, é preciso apresentar o gênero policial àqueles que têm pouco ou nenhum contato com ele. A literatura policial é um gênero difícil de definir. Suas histórias, de maneira geral, apresentam um crime e um investigador que irá procurar solucionar os problemas gerados por esse crime. Em alguns livros, o “problema” é resolver o mistério da identidade do criminoso (ou de como ele pôde cometer tal crime). Em outros, não há mistério, mas uma trama criminosa que deve ser impedida pelo investigador em um clima de constante suspense.
Vou me ater, daqui por diante, ao primeiro tipo acima: o romance policial em que há um mistério a ser desvendado. Esse subgênero pode ser chamado de “romance policial inglês clássico” ou “romance de enigma” (ao qual pertencem Agatha Christie e Conan Doyle), e teve seu ápice na Inglaterra, durante o período entre-guerras.
Tzvetan Todorov (2006), em seu livro As Estruturas Narrativas, tem um capítulo dedicado à “Tipologia do Romance Policial”. Nele, há essa constatação, ligeiramente mal-humorada, sobre o gênero:

“A obra-prima habitual não entra em nenhum gênero senão o seu próprio; mas a obra-prima da literatura de massa é precisamente o livro que melhor se inscreve no seu gênero. O romance policial tem suas normas; fazer ‘melhor’ do que elas pedem é ao mesmo tempo fazer ‘pior’: quem quer ‘embelezar’ o romance policial faz ‘literatura’, não romance policial.”
Com todo o respeito que tenho a Todorov (e tenho muito respeito pelos livros dele que já li), sou obrigada a discordar firmemente dessa afirmativa, especialmente no tocante ao subgênero “romance de enigma”. Após anos lendo livros policiais, percebi que o bom romance policial, é justamente a história subversiva; aquela que, estando consciente de suas normas, de alguma forma, quebra-as deliberadamente para surpreender o leitor. Sem algum tipo de subversão, não há surpresa.
Não que eu acredite que o respeitável teórico acima tenha toda a culpa por fazer essa afirmativa: ele baseou muito de sua tipologia no que disseram os “teóricos do gênero”, especialmente os membros do Detection Club da Inglaterra, um clube de autores policiais famosos, dedicados a estudar e “proteger” o gênero policial. Esses teóricos são os principais responsáveis por essa visão de que o único romance policial que possa ser considerado “bom” é o que segue à risca todas as “regras” silenciosas desse gênero. Um dos presidentes do Detection Club, Van Dine, chegou mesmo a escrever e publicar uma série de regras que, segundo eles, jamais deveriam ser quebradas em um bom policial. Isso não impediu que todos os bons romances do período entre-guerras tenham subvertido ao menos uma delas.
A razão pela qual trago essa discussão de gênero literário para um trabalho sobre categorização por modelos cognitivos ideais, ou ICMs, (isso é, os pressupostos por trás de como fazemos uma categorização) é que acredito que são poucos os gêneros literários onde ICMs podem ser vistos em ação com toda a clareza. Mais que isso: enquanto bons escritores de outros gêneros podem fazer boa ficção com um conhecimento apenas intuitivo dos pressupostos de seu gênero, um escritor de romance policial necessariamente tem que conhecer algo dos modelos mentais formados por seus leitores, caso queira manter o mistério da história até o fim.
Em outras palavras, creio que o romance policial é um jogo cognitivo entre o autor e o leitor, em que um tenta deduzir e se adiantar às estruturas narrativas que crê que o outro está utilizando. E, dentre todos os autores policiais que conheci, poucos jogaram esse jogo tão bem quanto Agatha Christie. Essa é a razão pela qual escolhi um de seus contos, “O Móvel do Crime” (Motive versus Opportunity), como estudo de caso da aplicação de ICMs.
Antes de passarmos para essa parte, permitam-me uma breve explicação a respeito do que são ICMs.