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1 – Introdução
Uma de minhas escritoras
favoritas é a inglesa Dame Agatha
Christie. Muitas horas de minha vida foram gastas lendo seus oitenta romances,
e através dela, conheci e passei a admirar o gênero literário conhecido como
“literatura policial”. Diferentemente de outros gêneros, há um nível de imersão
tão grande em alguns desses livros, que eles ficam na fronteira entre o livro e
o jogo. Compreender o que há de tão especial nos romances policiais sempre foi
uma de minhas paixões literárias, e acredito que os estudos realizados por
vários pesquisadores a respeito de como nossa mente categoriza seja uma forma
de alcançar essa compreensão.
Antes de mais nada, é preciso
apresentar o gênero policial àqueles que têm pouco ou nenhum contato com ele. A
literatura policial é um gênero difícil de definir. Suas histórias, de maneira
geral, apresentam um crime e um investigador que irá procurar solucionar os problemas
gerados por esse crime. Em alguns livros, o “problema” é resolver o mistério da
identidade do criminoso (ou de como ele pôde cometer tal crime). Em outros, não
há mistério, mas uma trama criminosa que deve ser impedida pelo investigador em
um clima de constante suspense.
Vou me ater, daqui por diante,
ao primeiro tipo acima: o romance policial em que há um mistério a ser
desvendado. Esse subgênero pode ser chamado de “romance policial inglês
clássico” ou “romance de enigma” (ao qual pertencem Agatha Christie e Conan
Doyle), e teve seu ápice na Inglaterra, durante o período entre-guerras.
Tzvetan Todorov (2006), em seu
livro As Estruturas Narrativas, tem
um capítulo dedicado à “Tipologia do Romance Policial”. Nele, há essa
constatação, ligeiramente mal-humorada, sobre o gênero:
“A obra-prima habitual não entra em nenhum gênero senão o seu próprio;
mas a obra-prima da literatura de massa é precisamente o livro que melhor se
inscreve no seu gênero. O romance policial tem suas normas; fazer ‘melhor’ do que
elas pedem é ao mesmo tempo fazer ‘pior’: quem quer ‘embelezar’ o romance
policial faz ‘literatura’, não romance policial.”
Com todo o respeito que tenho a
Todorov (e tenho muito respeito pelos livros dele que já li), sou obrigada a
discordar firmemente dessa afirmativa, especialmente no tocante ao subgênero
“romance de enigma”. Após anos lendo livros policiais, percebi que o bom
romance policial, é justamente a história subversiva; aquela que, estando
consciente de suas normas, de alguma forma, quebra-as deliberadamente para
surpreender o leitor. Sem algum tipo de subversão, não há surpresa.
Não que eu acredite que o
respeitável teórico acima tenha toda a culpa por fazer essa afirmativa: ele
baseou muito de sua tipologia no que disseram os “teóricos do gênero”, especialmente
os membros do Detection Club da
Inglaterra, um clube de autores policiais famosos, dedicados a estudar e
“proteger” o gênero policial. Esses teóricos são os principais responsáveis por
essa visão de que o único romance policial que possa ser considerado “bom” é o
que segue à risca todas as “regras” silenciosas desse gênero. Um dos presidentes
do Detection Club, Van Dine, chegou
mesmo a escrever e publicar uma série de regras que, segundo eles, jamais
deveriam ser quebradas em um bom policial. Isso não impediu que todos os bons
romances do período entre-guerras tenham subvertido ao menos uma delas.
A razão pela qual trago essa
discussão de gênero literário para um trabalho sobre categorização por modelos
cognitivos ideais, ou ICMs, (isso é, os pressupostos por trás de como fazemos
uma categorização) é que acredito que são poucos os gêneros literários onde
ICMs podem ser vistos em ação com toda a clareza. Mais que isso: enquanto bons
escritores de outros gêneros podem fazer boa ficção com um conhecimento apenas
intuitivo dos pressupostos de seu gênero, um escritor de romance policial
necessariamente tem que conhecer algo dos modelos mentais formados por seus
leitores, caso queira manter o mistério da história até o fim.
Em outras palavras, creio que o
romance policial é um jogo cognitivo entre o autor e o leitor, em que um tenta
deduzir e se adiantar às estruturas narrativas que crê que o outro está
utilizando. E, dentre todos os autores policiais que conheci, poucos jogaram
esse jogo tão bem quanto Agatha Christie. Essa é a razão pela qual escolhi um
de seus contos, “O Móvel do Crime” (Motive
versus Opportunity), como estudo de caso da aplicação de ICMs.
Antes de passarmos para essa
parte, permitam-me uma breve explicação a respeito do que são ICMs.
2 – Sobre categorias
e ICMs
Dividir coisas em categorias
parece ser algo tão simples e natural que dificilmente paramos para pensar a
respeito. Ainda assim, categorizar (iremos usar “conceituar” com o mesmo
significado aqui para frente) é essencial em nossa vida, uma vez que nossa
linguagem está basicamente atrelada a nossa capacidade de organizar.
Vygotsky, em seu Pensamento e
Linguagem, lida um pouco com essa relação. Segundo esse pensador com baixa
porcentagem de vogais no nome, a formação de conceitos ocorre quando a criança
é capaz de perceber que certos objetos fazem parte de um conjunto com
características semelhantes. Isso não é um processo simples, onde a pessoa
simplesmente associa uma palavra a um estímulo e pronto, como se nossa mente
fosse um poodle amestrado. É uma série complexa de operações, que visa a
obtenção de um objetivo, e é preciso de anos de contato social intenso para que
uma criança apreenda de maneira correta as categorias que irá usar em sua
linguagem.
Em seu trabalho, Vygotsky
comenta que, antes de serem capazes de formarem conceitos da forma acima
descrita, o que seria algo que a mente humana só começaria a fazer na
puberdade, as crianças formariam “complexos”, que seriam formas imperfeitas de
conceituação. Os complexos teriam algo de subjetivo em sua formação, e nem
sempre as crianças usariam critérios fixos e conscientemente exprimíveis para
criá-los. Por exemplo, digamos que um adulto entregue um triângulo amarelo para
uma criança e pede a ela que separe, de um conjunto de formas geométricas
coloridas, outras que sejam semelhantes ao triângulo, para formar com ele um
grupo. Uma pessoa capaz de conceituar, no entendimento de Vygotsky, separará
outros triângulos, ou talvez outras peças amarelas. A pessoa poderá mesmo separar
outros triângulos amarelos, e isso ainda será operar com conceitos. Porém,
algumas crianças poderão realizar a seguinte operação: comparando o triângulo
amarelo com as outras formas, poderão separar um triângulo azul para fazer
parte do grupo. Então, poderão escolher um quadrado azul logo em seguida e,
depois, um trapézio vermelho (por possuir quatro lados, como o quadrado). No
fim, ela terá um conjunto de formas bem diferentes entre si, cuja lógica de
formação não poderia ser deduzida por alguém que não fosse a criança. A isso,
Vygotsky chamou “complexo em cadeia”.
Antes de rirmos das crianças e
suas tolices ao fazer conjuntos, vamos pegar o conceito (ou categoria) alegre. O que há em comum entre uma pessoa alegre, uma melodia alegre e um acorde
alegre? Uma pessoa alegre é alguém que experimenta o sentimento de alegria. Uma
melodia, sendo uma... bom, uma coisa,
certamente não tem sentimentos próprios. Logo, melodia alegre não é o mesmo que
pessoa alegre. Uma melodia alegre é aquela que causa o sentimento de alegria em
alguém. Um acorde em si não causa alegria ou tristeza, como uma letra do
alfabeto em si não causa alegria ou tristeza. Mas melodias alegres geralmente
têm a presença de certos acordes (geralmente acordes maiores), que podem acabar
ganhando o adjetivo de alegres.
Figura 1: Diagrama demonstrando a relação em cadeia na
categoria alegre. Note-se que “acorde
alegre” não se relaciona diretamente com “pessoa alegre”, pois o acorde não é o
que causa a alegria na pessoa. Primeiro, ele precisa se relacionar com “melodia
alegre”.
Outro exemplo de complexo que
temos é a categoria brincadeira. Ao
longo desse texto, temo ter escrito frases, como aquela em que chamo Vygotsky
de “pensador com baixa porcentagem de vogais no nome”, que irão fazer com que
os leitores duvidem de minha seriedade acadêmica, ainda que sejam estritamente
verdadeiras no contexto científico (o nome Vygotsky possui apenas 12,5% de
vogais). Essas frases ditas por mim podem ser classificadas como brincadeiras. Uma pessoa que conte uma
mentira (“Esse trabalho tem cem páginas!”) e logo depois esclareça a mentira
(“Te peguei!”) apenas para causar confusão no interlocutor está fazendo uma
brincadeira. Uma criança que fique por mais de uma hora quicando uma bola no
chão também está envolvida em uma brincadeira. Entretanto, qual critério
objetivo está sendo empregado para colocar essas três ações tão distintas – uma
verdade inusitada, uma mentira perceptível e um ato repetitivo – em uma mesma
categoria? Brincadeira não seria uma categoria formada por critérios subjetivos
e culturais, que em nada lembra os “conceitos verdadeiros” de Vygotsky,
parecendo-se mais com complexos?
Eu poderia gastar as próximas
vinte páginas citando exemplos de complexos que são utilizados na comunicação
do dia-a-dia, até convencer o leitor por puro cansaço de que tais complexos não
são uma exceção em nossa vida, um mero resquício de conceituação imperfeita,
mas uma das formas básicas que nossa espécie tem de categorizar. Com isso, não
digo que Vygotsky está errado ao dizer que “conceituamos corretamente” e
conscientemente apenas após determinada idade, apenas que a ideia de “conceito”
vigente na época dele era um tanto limitada, levando em conta como seres
humanos realmente conceituam. Ela levava em conta apenas um tipo específico de conceituação.
Na época de Vygotsky, um
conceito (ou categoria) era um conjunto de objetos com propriedades em comum.
Essas propriedades devem ser propriedades intrínsecas dos objetos. Elas não
poderiam depender de quem está categorizando, caso contrário, cada pessoa
formaria seus próprios conceitos e a comunicação seria impossível.
Essa teoria clássica vigorou por
muito tempo até que a natureza das categorias começou a ser discutida. George
Lakoff, em seu livro Women, Fire and
Dangerous Things, faz um panorama dos trabalhos que, ao longo do século XX,
levaram diversos pesquisadores a repensar o que é uma categoria, e como ela é
formada. O caso do conceito de “alegre” logo acima já é um exemplo de conceito
onde os membros da categoria não têm necessariamente propriedades em comum, mas
se unem através de uma cadeia de regras. E sobre as propriedades dos objetos
não dependerem de quem categoriza?
Para explicar meu ponto,
precisarei apresentar o leitor à Grande Raça de Yith. É um povo ficcional de
seres inteligentes, criados pelo escritor H. P. Lovecraft no livro A Sombra que
veio do Tempo (The Shadow out of Time).
Eles teriam vivido na Terra muito antes dos ancestrais dos seres humanos serem
mais do que pequenos mamíferos e seriam altamente inteligentes. Um yithiano é
descrito como possuindo um corpo cônico. Do topo do cone, saem quatro longos
tubos, dois com garras na ponta, um contendo uma cabeça onde estão os olhos da
criatura, algumas antenas e uma série de tentáculos, e o quarto tubo terminando
em tubos menores, em forma de canudos, que são as bocas da criatura. Na base do
cone, há um músculo que contrai e relaxa, para que o ser possa se deslocar.
Eles se comunicam com estalos de suas garras e têm um tempo médio de vida de
5000 anos.
Figura 2: Representação artística de um yithiano.
Imaginemos agora que uma
anomalia cósmica, tão comum nos trabalhos ficcionais de Lovecraft, fosse
responsável por transportar um yithiano para éons no futuro, bem no meio de uma
cidade humana deserta. Ele não é um grande estudioso de sua raça, logo, nunca
viu, nem ouviu falar de humanos. À sua volta, tem apenas ruínas de uma cidade e
vários objetos espalhados pelo chão. Digamos que nosso pobre viajante no tempo,
que acredita pertencer à única raça inteligente que existiu e existirá na
Terra, encontre no chão uma camisa de malha, uma calça jeans, uma meia de
poliéster e uma luva de lã. A grande pergunta é: ele será capaz de dizer que
todos esses objetos que ele nunca viu podem ser reunidos em uma mesma categoria,
a de “peças de vestuário”?
Além disso, yithianos possuem
sentidos que os seres humanos não possuem. Digamos que sejam capazes de
enxergar radiações infravermelhas e ultravioletas. Enxergariam eles o mundo com
as mesmas cores que somos capazes de ver? A categoria “frutas vermelhas” faria
algum sentido para eles? Uma vez que as bocas desses seres ficam separadas da
cabeça, seriam capazes de fazer uma categoria que incluísse “olhos” e “boca”?
Uma vez que se comunicam com sons feitos por suas garras, haveria alguma chance
de eles terem uma categoria que incluísse “boca” e “palavras”?
Parece bastante óbvio para nós
que nosso viajante do tempo não formaria essas categorias por conta própria. A
menos que ele pudesse ter contato com humanos e aprender a se comunicar
conosco, o yithiano categorizaria o mundo de acordo com sua cultura e sua
experiência corporal. Entretanto, por mais óbvio que isso possa parecer agora,
essa dedução contraria a teoria clássica das categorias. De acordo com ela, desde
que tivesse tempo o bastante, o yithiano categorizaria os objetos que encontrou
na cidade abandonada da mesma maneira que um humano faria, porque o simples
fato de não haver humanos por perto não mudaria as características que os
objetos têm em comum.
Esse tipo de contradição levou
vários pesquisadores a reformularem a forma como veem as categorias. Após
vários trabalhos, foi constatado que categorias nem sempre possuem “limites”
fixos (exatamente em que ponto uma pessoa deixa de ser considerada
“baixinha”?), e que algumas categorias possuem “protótipos”, isso é, aquilo que
pode ser considerado o melhor exemplo da categoria – os objetos que se
assemelharem mais ao protótipo pertencerão “mais” à categoria (por exemplo, o verde-bandeira é um bom exemplo de verde, o verde-piscina, nem tanto, já que algumas pessoas o chamam também de
azul-piscina). Outra coisa importante
é que categorizamos de acordo com nossa experiência corporal e cultural. Muitas
categorias que usamos simplesmente não têm razão de ser fora de nossa cultura e
de nossa lógica de como nosso corpo humano funciona. Isso não quer dizer que é
impossível para nós nos comunicarmos com pessoas de culturas diferentes (ou com
yithianos), é só que há uma dificuldade a mais para ser transposta.
Outra coisa interessante é que
parece haver, na escala de um conceito mais geral para um mais específico, um
nível básico, onde é mais fácil conceituar. Esse nível não é o mais específico,
nem o mais geral, mas um que fique em algum lugar entre os dois. Por exemplo,
tomemos o cão doméstico: vamos dizer, para fins de simplificação, que a
categoria mais específica à qual ele faz parte é sua raça, e a mais geral é a
de “animal”. Uma criança não aprende primeiro a diferenciar cães pela raça, ou
pelo fato de que eles são animais (colocando-o na mesma categoria que gatos ou
pássaros). Ela o identifica por seu gênero, “cão” (ou “au-au”, na linguagem dos
bebês). O mesmo aconteceria para diversas outras categorias. Isso abre uma
questão importante sobre estudos de categorização em crianças: normalmente, os
cientistas concluem que elas ainda não categorizam corretamente porque exigem
delas que lidem com níveis não-básicos de conceitos (digamos, que possam formar
um grupo apenas de animais e apenas de plantas). Acontece que o nível básico é
tão básico e tão natural, que é como se usá-lo não exigisse esforço nenhum da
mente. Quer dizer, a princípio, não parece digno de nota que uma criança possa
diferenciar cachorros de gatos, mas esse é um esforço de imaginação tão digno
quanto diferenciar um poodle de um bichon frisé.
Figura 3: Diferenciar
um poodle de um bichon frisé não é tão fácil quanto parece. A propósito, o
poodle é o da esquerda.
Lakoff tem sua própria teoria a
respeito de como categorias são formadas, e ela será muito interessante na
discussão a que nos propomos a respeito do romance policial. Ele acredita que categorizamos
utilizando-nos daquilo que ele chama de ICMs (modelos cognitivos ideais). ICMs
são estruturas especiais de pensamento. Lakoff explica os ICMs por exemplos.
Seu primeiro é o da categoria “terça-feira”. Essa é uma categoria que só faz
sentido se, em sua mente, você estrutura a passagem do tempo em ciclos de
claro/escuro chamados “dias”, e agrupa os dias em uma estrutura de sete,
chamada “semana”. Sem isso, “terça-feira” não tem nenhum significado. O modelo
de semana é uma idealização humana, já que, a rigor, não há nada na natureza
que nos obrigue a dividir os dias dessa forma (como os calendários bem
diferentes de outras civilizações provam).
Em outras palavras, para Lakoff,
nós caracterizamos com base em uma série de pressupostos (que, por si próprios,
são categorias). A teoria dos ICMs propõe que categorias se entrelaçam, se
relacionam e se superpõe, de forma a moldar os pressupostos que nos guiarão na
criação de novas categorias. Mais ainda: podemos usar ICMs diferentes para
lidarmos com a mesma situação, como quando tomamos o remédio contra a gripe que
nos foi prescrito, mas não esquecemos de tomar o chazinho de ervas de nossa
avó. Nosso conjunto de conceitos científicos nos leva a categorizar o
comprimido como um meio de cura. Nosso conjunto de conceitos populares,
adquiridos na infância, nos leva a colocar o chá da avó na mesma categoria.
Entretanto, um ICM não invalida o outro. Um ICM nem sequer possui a “obrigação”
de corresponder fielmente à realidade do mundo, e é aí que surgem os protótipos
em uma categoria.
Vou pegar emprestado o exemplo
de Lakoff, com algumas ligeiras adaptações para a língua portuguesa. Na nossa
sociedade, “solteirão” é uma categoria que abarca homens de certa idade que
nunca se casaram, e tem um ligeiro tom de ofensa, ou depreciação. O pressuposto
(ou ICM) por trás dessa categoria é que, na sociedade brasileira, homens e mulheres
se casam enquanto estão jovens, e que esse é o comportamento socialmente
aceitável. Entretanto, como esse modelo acomoda padres, homossexuais, casais
“amigados” e um muçulmano que tem apenas uma esposa, quando poderia ter três? A
verdade é que acomodará com variados graus de dificuldade, e é por essa razão
que o homem acima de quarenta anos, heterossexual, não-celibatário e não casado,
será o exemplo máximo da categoria “solteirão”, enquanto um homem assumidamente
homossexual na mesma situação será um exemplo ligeiramente menos adequado, aos
olhos da população em geral.
Basicamente, estudar ICMs é
destrinchar os pressupostos que governam a sociedade e a comunicação humana. O
que nos leva novamente à nossa proposta de utilizá-los para estudar o romance
policial de enigma, exemplificado por Agatha Christie.
3 – A elaboração do
ICM do romance de enigma
Para começarmos nosso estudo do
conto de Agatha Christie, primeiramente, temos que definir qual é o modelo de
pressupostos que permeiam o gênero policial. Como já foi citado anteriormente,
o escritor S. S. Van Dine publicou, em 1928, vinte regras que, em teoria,
formariam o protótipo de um romance policial de enigma. Todorov (2006) resumiu
as regras em oito, que reproduzirei abaixo:
“1. O romance deve ter no máximo
um detetive e um culpado, e no mínimo uma vítima (um cadáver).
2. O culpado não deve ser um
criminoso profissional; não deve ser o detetive; deve matar por razões
pessoais.
3. O amor não tem lugar no
romance policial.
4. O culpado deve gozar de certa
importância:
a) na vida: não ser um empregado
ou uma camareira;
b) no livro: ser uma das
personagens principais.
5. Tudo deve explicar-se de modo
racional; o fantástico não é admitido.
6. Não há lugar para descrições
nem para análises psicológicas.
7. É preciso conformar-se à
seguinte homologia, quanto às informações sobre a história: “autor: leitor =
culpado: detetive”.
8. É preciso evitar as situações
e as soluções banais (Van Dine enumera dez delas).”
Essas regras, como fica
implícito pelo ponto 7 de Todorov, se
destinam a fazer do romance policial um “jogo justo”, de forma que seja
possível, desde que o leitor faça um esforço intelectual suficiente, a
antecipação da revelação final. O autor deve fazer esforços para evitar o
sucesso do leitor, mas sem “trapacear”.
Sendo assim, podemos criar o ICM
do romance policial de enigma como composto dos seguintes pressupostos,
assumidos pelos leitores quando leem o gênero:
1. Há um mistério a ser
resolvido, os fatos da história não são meramente fortuitos ou acidentais.
2. Os fatos apresentados pelo
autor são necessariamente verdadeiros e completos em cada detalhe essencial à
solução do mistério.
3. O autor deseja manter a
identidade do verdadeiro culpado em segredo até o fim do livro.
A proposição 1 é tomada como
garantida pela própria natureza do gênero (ele tem “enigma” no nome, afinal), e
raramente gera satisfação no leitor quando é subvertida. Um romance que não
possua o fator 1, portanto, será um exemplo ruim de romance policial de enigma.
A tensão entre o pressuposto 2 (o autor não pode falar mentiras) e o 3 (o autor
quer que o leitor não descubra a verdade por si próprio) é aquilo que gera as
demais características do romance policial. A imperfeição do modelo de Van Dine
está no fato de que ele tenta criar uma lista muito limitada de regras que
permitam que essa tensão seja criada. Agatha Christie subverteu cada uma das
regras dele e ainda assim, não violou o ICM acima. Infelizmente, caso eu cite
os títulos dos romances, estarei estragando o final deles. Para os leitores
curiosos, recomendo os três melhores romances da autora (não direi qual regra
quebram): O Caso dos Dez Negrinhos, O Assassinato de Roger Acroyd e Assassinato
no Expresso do Oriente.
Para fins de análise do conto a
que me propus, farei uma lista de corolários do ICM acima. Eles podem ser
inúmeros, mas, após ler todos os oitenta livros de Agatha Christie, separei os seguintes
como relevantes para o presente trabalho:
Corolários derivados do pressuposto 1:
A. O
romance tem no mínimo um culpado, que estará no rol de suspeitos. Todos os personagens devem ser considerados
suspeitos.
B. Um
aparente suicídio será sempre um assassinato. De maneira similar, qualquer
pequeno mistério, assim como um eventual segundo crime, estará de alguma forma
relacionado ao plano do criminoso.
C. O
móvel do assassinato de uma pessoa rica é, de maneira geral, o dinheiro.
Corolários derivados do pressuposto 2:
D. O
detetive está sempre certo em suas deduções, seu assistente está sempre errado.
E. Um
suspeito que possa provar que possui um álibi para o momento do crime será,
portanto, inocente.
F. Todas
as pistas da história apontarão para o culpado, mesmo que o leitor tenha
dificuldade em explicar a relação entre elas.
G. O
motivo do crime, assim como algumas pistas, estão diretamente ligadas à
psicologia dos envolvidos.
Corolários derivados do pressuposto 3:
H. O
verdadeiro culpado será o suspeito menos provável; o que parecer mais culpado
no início da história será inocente ao fim.
I. Um
personagem que saiba algo a respeito do crime será morto antes de poder contar
a informação ao detetive.
É bom notar que esse não
pretende ser um modelo exaustivo das recorrências na obra de Agatha Christie,
apenas um modelo simplificado das recorrências mais comuns nos livros da
autora, e que os leitores geralmente têm em mente ao ler uma obra da mesma.
Como a obra analisada será um conto curto, tal modelo será mais que suficiente.
4 – Motivo e
Oportunidade
O conto escolhido para análise
será o conto “O móvel do crime” (Motive
versus Opportunity), que, em sua adaptação animada, ganhou o título em
português de “Motivo e Oportunidade”. Ele figura na coletânea de contos Os
Treze Problemas (The Thirteen Problems),
de 1932. A razão da seleção é o fato dele ser curto e, ainda assim, conter boa
parte dos corolários acima.
O texto completo pode ser lido aqui. Recomendo fortemente que o leiam antes da análise, porque irei contar
o final e estragar a surpresa. Além disso, certos efeitos funcionam melhor no
texto completo que em uma lista de fatos. Já leu ou não se importa? Então,
prossigamos.
Para facilitar de análise, farei
um resumo dos eventos significativos do texto em uma lista numerada:
1. Simon
Clode é um senhor de idade que perdeu sua família mais próxima (filha, genro e
neta) e adotou três sobrinhos, Grace, Mary e George.
2. George
consegue emprego em um banco, Grace se casa com Phillip Garrod, um químico e
pesquisador, Mary continua em casa cuidando do tio.
3. A
suposta médium Eurydice Spragg e seu marido passam a influenciar o idoso,
dizendo serem capazes de evocar a neta de Clode, que, em suas mensagens, elogia
a médium continuamente. Phillip Garrod tenta desacreditar a médium
repetidamente, sem sucesso.
4. Simon
Clode decide fazer um novo testamento deserdando seus três sobrinhos e
beneficiando apenas a Sra. Spragg, então chama seu advogado e narrador da
história, Sr. Petherick. Clode escreve seu testamento com sua própria caneta (após
repreender a empregada por guardá-la no lugar errado) e passa para o advogado e
as testemunhas assinarem.
5. Petherick
coloca o testamento em um tipo de envelope azul que só ele possui e deixa-o
cair sem querer. Uma empregada o pega para ele e Petherick o coloca em um bolso
de seu casaco.
6. Antes
de ir embora, o advogado janta com a família. George Clode pega o casaco dele
para pendurar. Logo depois, Mary toma o casaco das mãos dele e o pendura no
hall de entrada, tudo isso sob os olhos do advogado.
7. Quando
vai embora da mansão, Petherick vê a médium ajoelhada próxima a seu casaco e
tem certeza de que ela teve tempo de ler o testamento.
8. O
marido da médium visita Petherick em seu escritório e fica sozinho com o
testamento enquanto o advogado está atendendo a um telefonema.
9. Meses
depois, quando Simon Clode finalmente morre, Petherick abre o envelope lacrado
na frente de todos, e ele contém apenas uma folha de papel em branco.
10. A
essa altura, o advogado interrompe a narrativa e a resume dessa forma para sua
audiência: “Desse modo, estamos diante
de um curioso problema: as duas pessoas que tiveram a oportunidade de
substituir o documento por um papel em branco não teriam um motivo para
assim fazer, ao passo que as duas outras pessoas que possuíam algum motivo para
fazê-lo não tiveram qualquer oportunidade de agir.”
11. Miss
Marple, a “detetive” do livro, imediatamente ri e escreve algumas palavras no
papel. Petherick as lê e dá a entender que são a solução do mistério, mas não
as revela para o leitor.
12. Os
demais personagens buscam resolver o enigma. Um deles propõe que a substituição
foi feita pelos sobrinhos do Sr. Clode quando estiveram com seu casaco, mas a
teoria é logo descartada.
13. Dois
outros personagens constroem juntos a teoria de que a médium substituiu o
testamento, mas, quando teve oportunidade de lê-lo e ver que a beneficiava, não
pôde colocá-lo de volta no lugar, de forma que o escondeu em algum lugar. Algum
dos sobrinhos ou das empregadas poderia tê-lo encontrado antes da morte de
Simon Clode e o destruído. Essa teoria também é revelada incorreta.
14. Petherick
revela que Phillip Garrod, o químico que se casou com Grace Clode, colocou,
próxima à caneta-tinteiro de Simon Clode, uma caneta idêntica contendo tinta
evanescente (uma solução de amido e iodo). A empregada da família não sabia que
a caneta dada a ela por Phillip era falsa, apenas sabia que deveria entregá-la
para o patrão no lugar da verdadeira, caso ele quisesse escrever algum
documento.
15. É
revelado que o papel entregue por Miss Marple a Petherick aludia à tinta
evanescente.
Agora, iremos dividir os eventos
da seguinte forma:
Os fatos de 1 a 5 estabelecem os
motivos que os três sobrinhos de Clode podem ter para quererem destruir o
testamento. Eles também estabelecem que os Spragg provavelmente são
inescrupulosos o bastante para tentar algum golpe, assim como o fato de que a
empregada da família tocou o testamento em algum ponto.
De 4 a 10 (interpenetrando a
apresentação dos suspeitos) está a narrativa do crime, onde as pistas são
apresentadas. As ações de cada suspeito são cuidadosamente mostradas e, em
teoria, o leitor seria capaz de descobrir a identidade do culpado apenas ao ler
essa descrição, assim como Miss Marple faz no evento 11.
Em 12 e 13, as explicações mais
óbvias para o crime são apresentadas e afastadas, de modo que o leitor é
convidado a um novo esforço de imaginação.
Em 14, a solução é revelada.
Por fim, em 15, Miss Marple se
prova correta.
Agora, façamos um confronto
entre a história e os corolários do ICM:
Além do que foi exposto no
quadro acima, há que se destacar que o próprio título original do conto mostra
que Agatha Christie estava perfeitamente consciente que estava jogando com um
dos pressupostos de sua ficção ao destacar a questão da oportunidade (é por essa razão que gosto mais da tradução da versão
animada do conto, uma vez que a tradução do livro apenas acentua o motivo). O corolário christiniano quanto
à oportunidade é a presença do criminoso no local e momento do crime, e o
criminoso do conto realmente teve acesso ao local, repetidamente. O que os
leitores só percebem ao fim é que a momento
do crime não é aquele que eles esperavam (isso é, após o testamento ser
guardado no envelope), mas um momento anterior a ele (quando a empregada
entrega a caneta preparada por Phillipe Garrod a Simon Clode).
No conto, os pressupostos do ICM
proposto por mim são perfeitamente atendidos: há um mistério (o roubo do
testamento), a autora conta a verdade a respeito de todos os pormenores do
caso, mas, graças à sua intenção de manter o suspense, ela habilmente esconde
uma verdade importante em meio a várias verdades inofensivas, de modo que o
leitor inevitavelmente será levado a conclusões errôneas.
Muito da força do conto está em
que nenhum dos corolários foi violado, nenhuma mentira foi contada pela autora.
As verdades foram apenas selecionadas de forma que os corolários não se
aplicavam da forma como o leitor foi levado a pensar, ainda que, a rigor, ele
pudesse ter percebido a solução, caso se apegasse a uma verdade específica, ao
invés de se focar em todas as outras.
Essa habilidade do autor
policial de enganar, creio eu, também tem suas raízes no ICM comunicativo que
Lakoff resume naquilo que ele chama de máxima
da solicitude: “Pessoas têm a intenção de ajudar umas às outras.”
O leitor do romance policial tem
consciência de estar em um “jogo” contra o autor do livro, como diz o princípio
3 do ICM proposto por mim, mas, ao mesmo tempo, a máxima da solicitude
frequentemente o leva a esquecer isso, acreditando que todas as informações
dadas pelo autor policial têm como objetivo ajudá-lo em suas deduções, quando,
em verdade, ele deveria desconfiar da utilidade de cada uma delas.
Após anos de leitura de Agatha
Christie, acho impressionante a capacidade dela de nos desviar da pista correta
usando os artifícios acima, ainda que o leitor esteja consciente que a maior
parte dos fatos narrados por ela são apenas uma cortina de fumaça. Na verdade,
ela escreveu um livro inteiro chamado “Um passe de mágica” (They do it with mirrors) onde, a todo
instante ela avisa que as circunstâncias do crime são apenas uma distração
criada pelo assassino, e ainda assim, o leitor é enganado até o momento da
revelação final.
Podemos dizer, acredito, que o
verdadeiro passe de mágica realizado por ela era saber lidar com a cognição
humana como poucos.
5 – Conclusão
A criação de um modelo cognitivo
ideal (ICM) para a literatura policial de enigma se provou uma forma útil e interessante
de analisar o que está por trás das surpresas que o gênero pode oferecer e da
satisfação que o leitor experimenta ao ler uma história do gênero. Podemos
dizer que a surpresa no conto analisado não vem do fato de que o ICM é
subvertido pela autora, mas de como ela induz o leitor a fazê-lo, esquecendo-se
de que faz parte do ICM policial o fato de o autor não estar tentando ajudar o
leitor a descobrir o criminoso, mesmo que esteja o tempo todo falando a
verdade.
Não apenas isso: no conto, a
autora segue o ICM policial e todos os corolários que propus à risca, mas, sem
contar uma única mentira, consegue induzir o autor a não prestar a devida
atenção a todas as condições dos corolários, assumindo como verdadeiras proposições
que não foram explícitas (como o momento exato em que o crime aconteceu).
Isso me faz retornar à crítica
que fiz a Todorov em busca de uma pacificação entre nós: no fim das contas, é
verdade que, como ele afirmou, um romance policial se atenha às suas regras
internas, mas continua sendo verdade que, em uma história em que as regras não
são subvertidas de nenhuma forma, não haverá surpresa. O que une as duas falas
é que a subversão não é realizada pelo autor: sem quebrar nenhuma regra, o
autor leva o leitor, por sua vez, a
subverter as “regras” (ou o ICM) inadvertidamente, ao se esquecer
temporariamente de uma de suas máximas.
Resta agora, apenas, a
curiosidade de saber se a consciência das regras desse “jogo cognitivo”, como o
apelidei na Introdução, faz com que o leitor se torne mais capaz de vencê-lo e
descobrir a solução de qualquer livro policial antes da revelação do criminoso.
No tocante à ficção de Agatha Christie, tenho minhas dúvidas. Ela era uma
jogadora experiente.
6 – Referências
CHRISTIE, A. Os Treze Problemas. Editora Record, 1930.
LAKOFF, G. Women,
Fire and Dangerous Things. The University of Chicago Press, 1987.
LOVECRAFT, H. P. A Sombra Vinda do Tempo. Editora Hedra,
2011.
TODOROV, T. As Estruturas Narrativas.
Editora Perspectiva, 2006.
VYGOTSKY, L. S. Pensamento e Linguagem. Editora Martins
Fontes, 1991.
Créditos das imagens
Figura 1: Elaboração própria
Figura 2:
Figura 3:
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