quarta-feira, 21 de abril de 2010

Estilizando o vampiro, ou o erro fatal de Stephenie Meyer

Eu ia simplesmente chamar vocês para darem uma lida no beta do Conservatório, mas achei melhor fazer uma ligeiríssima nota sobre vampiros em geral, inspirada na pergunta com que vêm me enchendo o saco há um tempo: "por que o Diego toma sol e não acontece nada? Mimimi..."

Zente, desculpem se eu digo isso, mas vampiros se desfazendo em cinzas com inocentes raios de sol é uma invenção hollywoodianesca tão tosca quanto os vampiros brilhantes de Crepúsculo (é, Edward, Diego não perdoou você). O fato é que filmes são muito mais curtos que livros, então, há certas liberdades poéticas que foram tomadas com os vampiros ao longo dos anos que não existiam originalmente no mito.

Vocês devem estar se perguntando agora, então: por que os vampiros-fogueira foram aceitos enquanto os brilhantes são toscos, se nenhuma das duas pirotecnias tem qualquer base?

Antes de mais nada, vamos sair da esfera literária e aprender uma ou duas coisinhas bacanas sobre desenho. Existe uma técnica chamada "estilização". Estilizar significa reduzir uma figura às formas mais simples possíveis, sem que ela perca sua identidade. Pablo Picasso estilizou um touro em uma série de desenhos muito famosa:


Percebem? Entre o primeiro touro, o mais realista, e o último, apenas um punhado de traços, houve vários intermediários. Mas todas as figuras têm em comum o fato de que são, inegavelmente touros. A identidade do animal não se perdeu.

O que isso tem a ver com o assunto anterior?

Simples. Quando vamos nos apropriar de uma figura mitológica já conhecida, não somos obrigados a fazê-lo de forma absolutamente realística, como o primeiro touro, mas, ao estilizá-la, precisamos ter certeza de que estamos suprimindo traços realmente supérfluos. O touro estilizado de Picasso não pareceria um touro se o pintor tivesse se esquecido os chifres, por exemplo. Ou, se lhe tivesse dado o contorno de um cavalo, o faria parecer mais um cervo que um touro.

É aí que entra a diferença entre o vampiro-tocha e o vampiro-purpurina. Stephenie Meyer cometeu erros sérios de estilização ao criar seu vampiro. Ela manteve três atributos importantes do vampiro: ele é morto, ele é sedutor e ele bebe sangue. Fim de papo. Alguém percebeu que falta algo muito importante aqui? O @cericn e a @anacarolinars perceberam. Não?

Eles não são noturnos! Desde a aurora da humanidade, os vampiros são um mal. E, como dizia Conan Doyle, é à noite que os poderes do mal são exaltados. Parece bobagem, mas ao fazer com que eles andassem pra lá e pra cá impunemente à luz do Sol e quase não tivesse cenas à noite na série Crepúsculo, Meyer tirou os chifres do touro. Não é porque os vampiros brilham. É só que nosso subconsciente nos diz, instintivamente, que eles não se enquadram exatamente naquilo que nos acostumamos a chamar de vampiros.

Não tenho a pretensão de ser capaz de estilizar perfeitamente os vampiros. Até porque, acredito que possam haver formas diferentes de estilização, mas que tragam a mesma ideia. Para ilustrar o que digo, vou listar algumas características que acredito serem básicas de um vampiro, sejam visuais, sejam literárias (isso na minha cabeça, claro):

1 - Eles bebem sangue
2 - Eles se levantam de túmulos
3 - Eles são noturnos
4 - Eles são pálidos
5 - Eles têm caninos
6 - Eles encantam suas vítimas
7 - Eles são fortes
8 - Eles não morrem de morte natural

Acho que dá para começar com isso. Um vampiro com todas essas características é inegavelmente um vampiro para qualquer um. Mas eu o compararia ao penúltimo dos touros de Picasso. Acredito que um vampiro estilizado poderia conter tanto as características 1, 3, 7 e 8 quanto as características, digamos, 3, 6, 7 e 8. Sim, ele poderia se alimentar de algo que não sangue. Quanto casos há dos tais vampiros de energia? O caso dos caninos, admito, coloquei mais por questões estéticas que lógicas ou históricas. Mas é que, se você apresentar um smiley, ele logo será identificado como um ser humano. Se apresentá-lo com presas, será identificado como vampiro, tal a força dos caninos longos no imaginário popular.

Se você pegar 2, 7 e 8, terá um zumbi. A estilização estaria incompleta. Percebem? Há várias formas de se fazer a estilização, muitas que funcionam, mas um bocado que dá ideias erradas. Escolher as características certas nem sempre é fácil.

A moral da história não é, exatamente, a de que é dever de honra de um escritor ser convencional no momento de usar uma figura mitológica, nem esse blá-blá-blá intelectual chato. Gostem os ranzinzas ou não, Stephenie Meyer FEZ sucesso com seus vampiros incompletos, mas até muitos de seus fãs reconhecem que os vampiros dela são muito diferentes do tradicional. Receio que, se ela não tivesse atingido as leitoras em cheio com sua trama açucarada, ela seria um motivo ainda maior de piadas. Minha mensagem é que, se alguém quer se aproveitar de qualquer criatura mitológica, e pretende fazer isso sem criar uma criatura diferente e usar o nome antigo (o que pode dar certo se você é um gênio ou tem sorte, mas terrivelmente errado se não é ou não tem - e menos de 1% dos escritores são gênios, menos ainda têm sorte), tem que tomar cuidado na estilização.

É verdade que a imagem dos vampiros (por exemplo) mudou muito desde as primeiras histórias de cadáveres sugadores de sangue até hoje. Mas isso não foi de uma história para outra. Foi gradativo e, até onde pude notar correndo os olhos em histórias de vampiros do século XIX, eles acrescentaram muitas coisas ao mito original, mas tiraram bem poucas. Ainda usando comparações desenhísticas, creio que eles pegaram um rascunho (geralmente, criaturas mitológicas em seu estado bruto não são muito mais que isso, vide descrições de lendas brasileiras) e o arte-finalizaram, mas permitido que ainda fossem reconhecíveis os traços principais. Pegar esse desenho e distorcê-lo até só sobrar o branco dos olhos é como revisitar a Monalisa desenhando uma loura de biquíni. Pode ser um desenho sensacional, mas se a tal loura não tiver nem o sorriso misterioso da Gioconda, como um desavisado poderia dizer que se trata de uma revisitação de DaVinci?

Sejam responsáveis, pessoal. Ser original é criar coisas novas, mas ser original também é usar coisas antigas de um jeito diferente. Ficou muito na moda dizer “meus vampiros”, “seus vampiros”, “meu lobisomem”, “seu lobisomem”, mas isso é errado. “Vampiro” e “lobisomem” são ideias. Embora cada pessoa os veja de um jeito, existe aquilo que está no inconsciente coletivo. Não subestime o que as outras pessoas pensam a respeito do tema que você está tratando. São essas pessoas que vão te ler.

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(No próximo post, farei alguns comentários sobre como fiz minha estilização. Talvez ajude a dar uma ideia de como fazer isso pra alguém que não tenha ideia de como fazer. De bônus, virão uns links bacanas. Até lá. o/)

15 comentários:

  1. Muito bom texto!
    E bem desenvolvido. Muito bem desenvolvido.

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  2. Sensacional, Dri.

    Você conseguiu expressar todo o meu desconforto em relação aos vampiros de Crepusculo!

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  3. Valeu pelas comentaários, povo. ^^

    Isso tava na minha garganta tem um tempo. =P

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  4. Como é que eu não dei os parabéns ainda? Ótimo post!

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  5. Adorei o post!

    Curto muito o argumento que é uma lenda e portanto varia na cabeça, país, cultura de cada um. É o que eu sempre tento pensar quando vejo vampiros q não me agradam muito, mas no caso da série do crepúsculo eu fico um tanto irritada com o fato deles andarem por aí no sol x.x. O fato de serem noturnos é uma característica ligada ao sobrenatural no meu subconsciente, então encaixa perfeitamente c/ uma criatura ... morta. E particularmente acho uma criatura mais interessante com essa limitação noturna.

    Mas ainda tento (juro, tento), respeitar as menininhas que suspiram pelos livros, a maioria não leria livro de vampiro "comum" e está suspirando pela purpurina, acredito q a lenda tenha uma outra forma na cabeça delas, pelo menos com as minhas conhecidas.

    Primeira vez que entro no blog e agora vou virar leitora constante. ;P

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  6. Valeu a vocês, que bom que consegui fazer algo que preste. ^^"

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  7. Posso ser curto e direto, e você qual a figura estilística que usou para desenhar o seu? Stephanie Meyer transformou algo que estava esquecido e relegado a segundo plano em algo vendável. E diga-se de passagem, desde de Anne Rice. Se a releitura dela foi pobre, isso eu não saberia dizer, penso que você acertou em cheio ao dizer que ao longo do tempo a mitologia do Vampiro foi se estratificando e até se perdendo, mas enquanto não se lança uma ótica nova sobre o tema. Já que tudo o que precisava ser falado já foi dito, eu continuo achando que ela teve uma idéia estupenda, mesmo achando que Romeu e Julieta foi a sua tônica e a inspiração desde o início. Bem, ela não chega ser um monstro sagrado da Literatura, mas é inegável que vendeu bastantes livros. Ao menos a série Crepúsculo. A hospedeira foi um fiasco. Desafio você a criar algo inusitado sobre vampiros, sei que dá conta do recado. Grande abraço.

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  8. Alexandre, em primeiro lugar, histórias de vampiro, desde o século XIX, SEMPRE foram vendáveis. SEMPRE. Entre a "era Anne Rice" e o lançamento de Crepúsculo, em 2005, tivemos o RPG Vampiro: A Máscara, que virou febre, a novela brasileira O Beijo do Vampiro, o autor André Vianco e seus livros, animes e mangás de vampiros, o filme Anjos da Noite, entre outras coisas. Eu podia ficar até amanhã falando de sucessos de venda dos carinhas de caninos.

    Romeu e Julieta não tem NADA a ver com Crepúsculo. Teria se a Bella fosse lobisomem do bando do Jacob. Não sendo o caso...

    Olha, você chamaria um personagem de ET se ele não veio de outro planeta? Chamaria um talher de garfo se ele não tivesse dentes? Eu disse que a Meyer tentou vender como vampiro algo que praticamente não é um, só isso. Não que a história dela é ruim.

    No mais, eu não disse que é impossível ser original a respeito do que quer que seja. Mas ser original não é fazer uma história sobre porcos onde eles são animais de carga de pernas longas e que relincham. Muitas vezes, é só lançar seu olhar diferentes sobre os porcos. Tanta gente, ao fazer um "vampiro original" se preocupa mais em dar "poderes originais" pra eles que fazer uma história realmente original, com abordagens originais e coisas assim.

    E eu não procuro fazer nada inusitado com vampiros. Só me divirto com eles, o que acho infinitamente mais importante que "ser original".

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  9. Ah sim, Romeu eu e Julieta, estava estilizando a trama quando pensei no tema, o que condiz muito com o seu texto, mas obrigado pelas considerações.

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  10. Nossa, eu não tinha lido esse post ainda, muito bom!

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    1. Que bom que gostou! :D
      (E que bom que agora tenho como responder posts mais fácil. xD)

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