sexta-feira, 28 de setembro de 2012

Sobre cães e pessoas

Sei que o que vou dizer não tem nada a ver com literatura ou o que quer que seja, mas precisa ser dito. Quem achar bobagem, pode voltar aqui depois, quando teremos (assim espero), um post mais alto-astral. Mas não posso ficar calada diante dos verdadeiros horrores que presenciei há alguns meses. Esse post ficou nos rascunhos esse tempo todo porque era algo doloroso de se falar.

Quem me acompanha no facebook e quem lê regularmente o Bram & Vlad deve ter ouvido falar da Nina, uma cadelinha que pegamos antes da novela com sua homônima aparecer. Minha mãe e eu a encontramos perdida no centro da cidade e a levamos para casa, depois dela quase ter sido atropelada. Ela se mostrou logo animada e brincalhona, um amor de cachorra, mas era grande demais para nosso apartamento. Procuramos dono para ela e, com muita dificuldade, descobrimos que a moça da limpeza da nossa escola a queria. Pouco depois que a entregamos para a nova dona, saiu o resultado do exame de sangue que fizemos nela: ela estava com leishmaniose.

(Aqui, faço uma pausa para refrescar os conhecimentos de Biologia de vocês: a leishmaniose é causada por protozoários do gênero Leishmania, que podem usar como hospedeiro tanto o homem quanto o cão, e outros mamíferos. A doença é transmitida pela picada do mosquito-palha (ou birigui) e tem duas formas: a cutânea e a visceral. A cutânea é menos grave, e causa feridas horrorosas na pele. A visceral ataca órgãos vitais e é gravíssima.)

Como esse exame às vezes dá falso positivo, fizemos pelo menos três para confirmar. Nesse meio tempo, Nina fugiu da casa da dona e foi parar, três dias depois, na porta do meu prédio, com a maior cara lavada. Sabíamos, então, que ela era nossa responsabilidade, de ninguém mais.

Para encurtar a história, exatos dois meses depois que achamos Nina na rua, veio a resposta final: ela realmente estava com leishmaniose.

Decidir o que fazer foi extremamente difícil. Quer dizer, a leishmaniose tem tratamento. É bem caro, mas existe. Os remédios fortes eventualmente fazem o fígado e os rins do cachorro pararem, mas ele pode ter uma vida relativamente normal até lá. O problema é que o tratamento não impede a transmissão e, como eu disse acima, ela acontece por causa de um mosquito. Tratar leishmaniose significa que você deve, além dos remédios e exames, manter seu cão constantemente protegido contra mosquitos, usando coleiras anti-pulgas e sprays de citronela, além de ter que trancá-lo em um ambiente telado nos horários de maior incidência do mosquito. Se você falhar na proteção do seu cão, bem, Belo Horizonte é um foco gigante de leishmaniose e outros cães e pessoas podem ser infectados. Em caso de idosos e crianças, a doença pode levar à morte. Se querem saber o quanto é difícil controlar surtos de doenças transmitidas por mosquitos, apenas conte há quantos anos você assiste propagandas de combate à dengue na TV.

Se a doença não tivesse esse agravante de passar para seres humanos, seria mais fácil para nós tratarmos a Nina, mas minha família chegou à conclusão que não estávamos preparados para a enorme responsabilidade de impedir que a doença da Nina se alastrasse. Ninguém mais se ofereceu para cuidar dela (se já era difícil quando pensamos que estava saudável...), e fomos ficando sem opção. Por fim, ela foi recolhida pela Prefeitura para o sacrifício.

Não vou dizer que foi a decisão mais agradável para mim, que não restou nenhum traço de culpa, que questionamentos ainda não pipocam aqui e ali. Meu único consolo é que ela está bem, agora, e nem chegou a sofrer com a doença, que deixa o cão num estado lastimável.

Se você está achando que esse foi o horror daqueles meses, saiba que não, não foi.

Durante o período em que estávamos tentando achar um lar para a Nina, minha mãe e eu entramos em contato com o CCZ (Centro de Controle de Zoonoses) de BH, com várias ONGs de proteção aos animais, com pessoas que decidem recolher animais de rua para achar lares para eles e todo esse universo dos animais abandonados.

Eu não estava preparada para o que acabei descobrindo.

Quer dizer, todo mundo mais ou menos sabe que existem muitos animais abandonados, que os defensores dos animais estão sempre atrás de dono para algum animal, que a leishmaniose é uma preocupação séria em BH. Mas cara... CARA!

Tanto o CCZ quanto as ONGs que contatamos têm dezenas (quando não chegam a centenas) de animais esperando adoção. Raramente um defensor dos direitos dos animais tem menos de dez cães em casa. Desses todos, muitos estão doentes. Tratamento veterinário é caro e raríssimos são os veterinários que aceitam fazê-lo de graça ou pela metade do preço quando se trata de um cão abandonado. Não existe atendimento veterinário público, e nem o Governo disponibiliza todas as vacinas necessárias o ano inteiro. Isso faz com que ter um animal saudável e imunizado seja um luxo de quem tem algum dinheiro, e faz com que as áreas mais pobres sejam ninhos de doenças. E isso é irônico e triste, porque é nessas regiões que as pessoas estão mais dispostas a cuidar de animais abandonados. Onde há gente com grana, ninguém quer nem olhar pro bicho doente. Aliás, pelo tanto de animais de raça abandonados, são as pessoas com condições de cuidar dos animais que os abandonam.

Se isso não basta para horrorizar alguém, ontem mesmo vi no Facebook um cara que recolhe animais, trata e depois procura donos para eles. Esse rapaz está com a vida toda complicada por causa disso, mas simplesmente não consegue parar de ajudar os animais doentes e abandonados que vê. Muitos de raça. E são sempre histórias difíceis, como a do cachorro com um tumor estourado nas costas, ou do cão abandonado duas vezes, mas que andou quilômetros para chegar de novo em casa, apenas para ser maltratado e mantido do lado de fora.

Que tipo de seres humanos nós somos, ou estamos querendo ser? Onde está nossa responsabilidade como guardiães de seres vivos que confiam em nós? Eu sei que as pessoas têm dificuldade de entender minha simpatia pelos animais que comemos, até porque alguma distância emocional é necessária entre você e sua comida. Mas cara, animais de estimação não pedem para ser adotados, nós os tiramos se sua mãezinha e os levamos para casa porque eles são fofos e fazem carinhas bonitinhas, e nós temos a cara de pau de jogarmos esses animais na rua quando nos cansamos deles. Cara, deixar uma planta morrer porque você esqueceu de aguar já é um verdadeiro crime, já que a planta depende inteiramente de nós e nem pode fazer barulhos que indiquem que está com sede. Mas jogar na rua um animal que nunca aprendeu a procurar seu próprio alimento porque nunca permitimos isso mostra muito a respeito daquele egoísmo cosmicamente grande que todos temos dentro de nós e tentamos negar.

Já fiquei sabendo de gente que ia soltar o cachorro porque ia viajar por 15 dias para a praia e cães não eram permitido lá onde eles iam. É.

Por favor, amigos que me leem aqui: adotar um animal de estimação é como adotar uma criança que não cresce. É um compromisso que você vai carregar por uns 15 anos, no mínimo, um ser que dependerá de você para tudo, e que não será aceito em todos os lugares que você for. É um filho seu, que deverá ser bem cuidado, alimentado, educado e amado. Você não precisa virar uma socialite que mima o bicho de estimação mais do que mimaria uma criança, mas não pode se esquecer de que a VIDA do seu animal gira em torno da sua, e se você o negligenciar, ele vai morrer. E o pior: ele não é um tamagotchi com botão de "reset". Ele não vai ressuscitar e nenhum animal que você comprar para substituí-lo vai ser igual a ele.

Está passando da hora da Humanidade crescer e se tornar mais responsável...

4 comentários:

  1. Odeio qdo tratam seres vivos como mobília: "entao, vamos ter um cachorro?" e tica no to do social. "agora, um menino e uma menina" ☑ e por aí vai =_=

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    1. Pois é. Até quando animais e Natureza vão ser mobília, vão ser objeto de "tou pagando, faço o que quiser"?

      Tenso isso. :/

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  2. Se a pessoa é egoísta ao ponto de soltar um animal que já se apegou a ela, que, antes, seja egoísta o suficiente para nunca adotar um. Se não pode cuidar, não adote.

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